Uma estudante cotista diz ter sido vítima de racismo na Universidade Federal de Rondônia (Unir) após ter sua matrícula cancelada pela banca de heteroidentificação que considerou que ela não era indígena. Vitória Barros foi aprovada para cursar medicina e diz pertencer ao povo Tapuia Tarairiú.
A banca de heteroidentificação, que visa comprovar se o aluno tem direito a cota étnico-racial, visando evitar fraudes, afirma, em relatório, que a estudante “fez chapinha e maquiagem para parecer mais com o fenótipo indígena” e que nas redes sociais ela “aparece com cabelo bem cacheado”.
O Estatuto do Índio (Lei Nº 6.001) determina que “Índio ou Silvícola é todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”.
A Unir também diz que os membros da comissão que analisaram a matrícula da estudante não conseguiram contato com todas as lideranças que assinaram a declaração de pertencimento indígena entregue por ela.
O g1 conversou com as três lideranças indicadas na declaração e todas elas confirmaram o pertencimento da jovem à comunidade.
São elas:
- a cacica, Francisca Conceição Bezerrao professor de língua materna e guardião da memória cultural do povo
- Tapuia Tarairiú, Josué Jerônimo
- Ednete dos Santos Silva, coordenadora de ação.
Jerônimo e Ednete alegam que não foram contatados pela a Unir e que, se tivessem sido questionados, confirmariam que Vitória faz parte do povo Tapuia Tarairiú.
Já a cacica, Francisca da Conceição, afirma que conversou com a comissão e respondeu todos os questionamentos feitos, dizendo, inclusive, que a estudante é parte de seu povo.
Vitória é de Macaíba, no Rio Grande do Norte, a mais de 4 mil quilômetros de Rondônia. Ela diz pertencer ao povo Tapuia Tarairiú, da comunidade indígena Lagoa do Tapará, que fica entre Macaíba e São Gonçalo do Amarante (RN).
Do sonho ao pesadelo
De acordo com a estudante, os problemas com a universidade começaram logo após a inscrição. A princípio, a matrícula dela foi negada por “não estar de acordo com o edital”. Para ter acesso à modalidade de cotas indígenas na Unir, é necessário anexar dois documentos ao processo: autodeclaração e declaração de pertencimento indígena. Vitória tinha ambos.
Como Vitória anexou todos os documentos necessários, com assinatura de três lideranças do seu povo, decidiu entrar com recurso contra o indeferimento da matrícula. Alguns dias depois saiu o resultado e ela estava oficialmente matriculada em medicina.
“É o meu sonho, que eu achava que tinha realizado, mas de um sonho começou a virar um pesadelo”, relata.
A estudante comprou a passagem dela e do pai para Porto Velho, organizou a mudança, pediu a exoneração do cargo público que ocupava, comprou os materiais solicitados e começou a assistir as aulas on-line ainda no Rio Grande do Norte.
Duas semanas depois, em uma sexta-feira, foi surpreendida com o cancelamento da matrícula, dois dias antes da data marcada para a viagem para Rondônia.
“Eles deram o resultado da minha entrevista no último dia que poderia interpor recurso, em uma sexta-feira, no final do expediente, então eu não tinha como recorrer. Como a passagem já estava comprada eu decidi vir resolver pessoalmente”.
O cancelamento da matrícula aconteceu semanas depois da entrevista de heteroidentificação feita por videochamada no dia 16 de junho. Participaram duas servidoras da Unir e duas voluntárias indígenas, além da estudante.
“Uma coisa que me chamou atenção é que no final uma das voluntárias falou: ‘olha, a gente entrou em contato com as lideranças, mas só conseguimos falar com sua cacique e isso é muito ruim pra você. Porque você que é indígena sabe que muitas pessoas fraudam e muitos caciques assinam documentos para qualquer pessoa pra colocar quem eles querem aqui dentro da universidade’”, relembra.
“Li atentamente cada detalhe [do relatório] e os argumentos usados eram basicamente achismos e falas extremamente racistas”.
Relatório
O relatório da entrevista descreve sem muitos detalhes os assuntos abordados (cultura, costumes e pertencimento à comunidade indígena) e a consideração de cada integrante da comissão que participou da reunião.
De acordo com o documento, uma das participantes falou durante a entrevista que “o indígena que entra por meio das cotas deve estar presente nas mobilizações dos coletivos que atuam dentro da universidade”.
O g1 questionou à Unir se essa é uma exigência que estudantes indígenas participem de mobilizações e coletivos. A Unir não respondeu a pergunta.
A decisão aponta que, apesar do discurso de Vitória demonstrar proximidade com a cultura da comunidade do povo indígena Tapuia Tarairiú, ela poderia “ter se preparado” para a entrevista por ter graduação em publicidade e propaganda.
Uma outra integrante diz que buscou “referências” nas redes sociais e aponta que Vitória “não se apresenta como indígena” e que ela “aparece com cabelo bem cacheado”. Diz ainda que a estudante fez “chapinha e maquiagem para se parecer mais com o fenótipo indígena” durante a entrevista.
A conclusão da banca foi que Vitória “não tem vínculo, nem pertencimento à comunidade indígena a qual declarou pertencer”.
“Eu estava em casa o tempo todo nesse dia [da entrevista], então não tinha nem porque fazer maquiagem. Eu não tenho cabelo cacheado, nunca tive e também se eu tivesse isso não me faria menos indígena. Se eu tivesse maquiada também não me faria menos indígena’”, ela aponta.
Judicialização do caso
Vitória chegou em Rondônia com provas a fim de resolver o problema da matrícula: fotos de quando era criança, cartão com a vacina prioritária contra a Covid-19 e outros. No entanto, ela enfrentou muitos problemas, entre eles: a servidora responsável pelo processo estava de férias e não havia suplente.
A jovem tentou contato com a Diretoria de Registro (Dirca) e Controle Acadêmico e a Pró-Reitoria de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis (Procea), além da reitoria da universidade.
“A servidora me falou: ‘como você se inscreveu no último dia do processo seletivo, eu não tive tempo para fazer essas ligações. Depois disso eu tive que fazer outras coisas e passei esse dever para as voluntárias’. Isso aí eu achei muito absurdo porque eu não poderia ser prejudicada porque eu me inscrevi no último dia, porque prazo é prazo, se eu me inscrevo no primeiro ou no último eu mereço o mesmo tratamento que todo mundo”, relembra.
“Quando eu perguntava sobre o processo o que eles me respondiam é que estavam com pouco tempo para resolver essas questões porque estavam ocupados com as demandas das alunas indígenas. Isso me deixou muito chateada porque eu sou uma aluna indígena que teve a matrícula cancelada e isso ninguém deu a menor importância”.
A estudante entrou com um pedido de mandado de segurança na Justiça Federal em 13 de julho. Ela pede a reativação da matrícula. Na primeira tentativa a liminar foi negada e ela recorre da decisão desde o dia 13 de setembro.
Um ofício da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que pede a reativação da matrícula foi anexado ao processo.